sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Todos os Cientistas Deveriam Ser Ateus Militantes

por Lawrence M. Krauss
tradução: Felipe Nogueira
fonte: The New Yorker


Como um físico, escrevo e palestro publicamente sobre a natureza surpreendente do nosso cosmos, principalmente por acreditar que a ciência é uma parte da nossa herança cultural e que precisa ser compartilhada de forma mais abrangente. Às vezes, me refiro ao fato de que a ciência e a religião estão frequentemente em conflito; ocasionalmente, eu ridicularizo dogmas religiosos. Ao fazer isso, sou publicamente acusado de ser um "ateu militante". Até mesmo um número surpreendente dos meus colegas perguntam educadamente se não seria melhor evitar alinear pessoas religiosas. Não deveríamos respeitar questões religiosas, mascarando possíveis conflitos, buscando um entendimento comum com os religiosos, para criar um mundo melhor e mais igual? 

Pensei sobre essas questões nesta semana quando vi a história da Kim Davis, uma funcionária judicial do estado de Kentucky que se recusou a registrar casamentos entre homossexuais, desobedecendo diretamente uma ordem de um juiz federal, e, como consequência, foi presa por desacato. (Ela já foi liberada).  Os defensores da Davis, entre eles o senador de Kentucky e também candidato à Presidência Rand Paul, estão protestando contra o que eles acreditam ser uma ameaça à liberdade religiosa dela. É um "absurdo colocar alguém na cadeia por exercer sua liberdade religiosa", disse Paul, na CNN.

A história da Kim Davis levanta uma pergunta básica: Até que ponto devemos permitir as pessoas quebrarem a lei, caso suas visões religiosas e a lei sejam conflitantes? É possível levar a pergunta a um extremo que até o Senador Paul acharia um absurdo: imagine, por exemplo, um jihadista cuja interpretação do Koran sugere que ele pode decapitar infiéis e apóstatas. Ele poderia quebrar a lei? Ou - para considerar um caso menos extremo - imagine um funcionário judicial muçulmano fundamentalista que não permite homens e mulheres não casados entrarem juntos no tribunal, ou que não registre o casamento de mulheres sem burca. Para Rand Paul, o que separa esses casos do caso da Kim Davis? A grande diferença, eu suspeito, é que o Senador Paul concorda com a visão religiosa de Kim Davis, mas discorda das visões do hipotético islâmico fundamentalista.

O problema, obviamente, é que o considerado sagrado para uma pessoa pode ser considerado insignificante (ou repugnante) para outra pessoa. Essa é uma das razões pelas quais uma sociedade secular moderna geralmente legisla contra ações, não contra idéias. Nenhuma ideia ou crença deve ser ilegal; por outro lado, nenhuma ideia deve ser tão sagrada que justifique legalmente ações que de outra forma seriam ilegais. A Davis é livre para acreditar no que quiser, assim como o jihadista é livre para acreditar no que quiser; em ambos os casos, a lei não restringe suas crenças, mas sim suas ações.

Nos últimos anos, esse território cresceu de forma nebulosa. Sob a bandeira de liberdade religiosa, indivíduos, estados, e até mesmo - no caso da Hobby Lobby - corporações argumentam que eles deveriam ser isentos da lei por razões religiosas. (As leis que eles pedem isenção não são focadas em religião; elas tem a ver com questões sociais, como aborto e casamento gay.) O governo tem um interesse em garantir que todos os cidadãos sejam tratados igualmente. Mas defensores da "liberdade religiosa" argumentam que ideais religiosos deveriam ser colocados acima dos outros como uma justificativa para suas ações. Numa sociedade secular, isso não é apropriado.

A controvérsia da Kim Davis existe porque, como uma cultura, temos elevado o respeito pelas sensibilidades religiosas a um nível tão desapropriado que torna a sociedade menos livre, não mais. Liberdade religiosa deveria significar que nenhum conjunto de ideais religiosos seriam tratados de forma diferente de outros ideais. Leis cujo único propósito é denegrir ideais religiosos não deveriam ser aprovadas, mas, de forma similar, as leis não deveriam elevar ideais religiosos.

Na ciência, é claro, a palavra "sagrada" é profana. Nenhuma ideia, religiosa ou não, ganha passa livre. A noção de que uma ideia ou conceito não pode ser questionada ou atacada é uma execração a todo empreendimento científico. Esse compromisso com o questionamento aberto está totalmente ligado com o fato de que a ciência é um empreendimento ateísta. "Minha prática como um cientista é ateísta", escreveu o biólogo J.B.S. Haldane, em 1934. "Isso quer dizer, quando eu faço um experimento, eu assumo que nenhum deus, anjo, ou demônio vai interferir no seu curso e essa assunção foi justificada pelo tamanho sucesso que obtive na minha carreia profissional". É irônico, realmente, que muitas pessoas são vidradas na relação entre a ciência e religião: basicamente, não há nenhuma relação. Em mais de 30 anos como um físico praticante, eu nunca ouvi a palavra "Deus" ser mencionada em um encontro científico. Acreditar ou não em Deus é irrelevante para o entendimento do funcionamento da natureza - assim como é irrelevante para a questão se cidadãos são ou não obrigados a seguirem a lei.

Como a ciência afirma que nenhuma ideia é sagrada, é inevitável que afaste as pessoas da religião. Quanto mais aprendemos sobre o funcionamento do universo, mais sem propósito o universo parece. Cientistas possuem a obrigação de não mentir sobre o mundo natural. Mesmo assim, para evitar ofender, cientistas às vezes dizem que as atuais descobertas estão em plena harmonia com doutrinas religiosas pré-existentes, ou permanecem em silêncio, ao invés de apontarem as contradições entre a ciência e a doutrina religiosa. É uma inconcistência estranha, uma vez que cientistas frequentemente discordam de outros tipos de crença. Astrônomos não têm nenhum problema em ridicularizar as afirmações dos astrólogos, mesmo que uma grande parte do público acredite nessas afirmações. Médicos não possuem problema em condenar as ações dos ativistas da anti-vacinação que põem crianças em perigo. No entanto, por razões de conveniência, muitos cientistas se preocupam que ridicularizar certas afirmações religiosas afasta o público da ciência. Quando eles fazem isso, eles estão sendo, no melhor dos cenários, condescendentes, ou, no pior, hipócritas.

Esse silêncio tem consequências significativas. Considere o exemplo da organização americana Planned Parenthood. Legisladores americanos estão pedindo um término governamental a não ser que os fundos federais destinados para a Planned Parenthood sejam removidos do orçamento do ano fiscal que começa em Outubro. Por que? Porque a Planned Parenthood fornece amostras de tecido fetal obtido em abortos para pesquisas científicas na esperança de curar doenças, desde Alzheirmer até câncer.  (Armazenar e manter os tecidos em segurança exige recursos e a Planned Parenthood cobra os pesquisadores pelos custos.) É claro que muitas pessoas que protestam contra a Planned Parenthood são opostas ao aborto por razões religiosas e são, em graus variados, anti-ciência. Isso deveria calar a boca dos cientistas pelo risco de ofendê-los ou afastá-los ainda mais? Ou deveríamos nos manifestar sinalizando que, independente do que as pessoas consideram sagrado, esse tecido seria jogado fora embora pudesse ajudar ou salvar vidas?

Finalmente, quando hesitamos questionar abertamente as crenças, por não queremos correr o risco de ofender, o próprio questionamento torna-se um tabu. Por isso, me parece que a necessidade dos cientistas de se manifestarem publicamente é ainda mais urgente. Como resultado de falar sobre questões da ciência e religião, eu escuto de muitos jovens a vergonha e ostracismo que passaram simplesmente por questionar a fé de suas famílias. Em alguns casos, eles tiveram seus direitos e privilégios proibidos porque suas ações confrontaram a fé de outras pessoas. Cientistas precisam estar preparados para demonstrar, através de exemplos, que questionar o que é considerado como verdade, especialmente a "verdade sagrada", é uma parte essencial de viver em um país livre.

Eu vejo uma relação direta entre a ética que guia a ciência e a que guia a vida civil. Cosmologia, a minha especialidade, pode aparentar estar bem distante da recusa da Kim Davis em registrar casamentos a casais gays, mas na realidade os mesmos valores se aplicam em ambos os casos. Sempre que afirmações científicas são apresentadas como inquestionáveis, elas enfraquecem a ciência. De forma similar, quando ações ou afirmações religiosas relacionadas à santidade são feitas sem impunidade na nossa sociedade, nós enfraquecemos a base da democracia secular moderna. Devemos a nós e às nossas crianças não permitir que governos - totalitários, teocráticos ou democráticos - endorsem, encorajam, forcem, ou legitimizem a supressão do questionamento aberto com objetivo de proteger ideias consideradas "sagradas".  Quinhentos anos de ciência liberaram a humanidade das correntes da ignorância forçada. Deveríamos celebrar isso aberta e entusiasticamente, independente de quem vamos ofender.

Se isso é o que faz alguém ser chamado de ateu militante, nenhum cientista deveria se envergonhar do rótulo.